A revolução começa no corpo

 

Entrevista com Rejane Amaral, terapeuta e professora de dança

Rejane Amaral : terapeuta e professora de dança

“Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira”. (Cecilia Meireles) "Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito". (Manoel de Barros) 

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1. Você pode nos explicar o que Biodanza é?

De um modo bem sintético, a Biodança é um sistema criado pelo chileno Rolando Toro, que tem o método vivencial como metodologia de trabalho. Esse método envolve a utilização do tripé “consigna-musica-vivência”, a partir de exercícios semi-estruturados nas linhas da vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência. Sua prática é realizada em grupo, onde se desdobram exercícios individuais e grupais. Rolando Toro fundamentou a Biodança a partir de seus estudos, dialogando com diferentes áreas do conhecimento (psicologia, biologia, antropologia, etc.) e desenvolvendo seu trabalho corporal a partir do que ele chamou de “princípio biocêntrico”, como uma afirmação da vida, dos instintos quer permeiam o homem, que em sua racionalidade, distanciou-se de suas sensações, do corpo e suas potências relacionais.

2. Biodanza está crescendo na América Latina?

Como estou há muito tempo distante do trabalho com Biodança não saberia dizer, no contexto atual, como se encontra o movimento de Biodança na Améria Latina. Posso dizer que, quando ainda estava envolvida com este movimento (entre 1988 a 2000), havia uma considerável participação e estudo desse sistema em vários países da América Latina. Nos últimos quinze anos tenho me dedicado mais ao estudo da Dança (principalmente da dança contemporânea) enquanto arte e área de conhecimento e também sua contribuição no contexto terapêutico, sem no entanto, trabalhar com o método vivencial, com o qual a Biodança trabalha.

3. Você acha que a Biodanza é mais fácil na América Latina do que em outros lugares, porque tocar é menos tabu? Por exemplo, na cultura britânica, o tocado é freqüentemente associada com a sexualidade.

Bom, eu não tenho experiência com a cultura européia. Nunca estive na Europa. Mas, o que sei, de maneira empírica, a partir também de relatos de amigos que tenho em alguns países da Europa, é que o “toque”, para algumas pessoas de países europeus (já convivi com amigos de outros países como França, Suíça, Holanda e Itália), pode ter um significado “invasivo” ou “desrespeitoso”. Entretanto, prefiro não fazer uma avaliação generalista, para não cair na cilada do estereótipo. Na maioria das vezes, enxergamos o outro, o diferente, como algo estranho a nós, e muitas vezes caímos na fronteira do julgamento moral. Creio que diversos fatores da ordem do corpo, como o político, o cultural, o social, o econômico estão imbricados no “modo” como cada pessoa vai lidar com o toque, com o contato corporal. E quando falo de contato corporal, não me refiro somente ao tato, à pele, mas aos outros sentidos do corpo, como a visão, por exemplo. O modo como operamos ou como experienciamos essas fronteiras de contato certamente estão atravessadas também pela cultura. Mas “identidade cultural” talvez não seja mais suficiente, enquanto conceito, para dar conta do corpo ou das relações que se criam e recriam numa sociedade. Por exemplo, a imagem que se tem do Brasil no exterior, é a de que o povo brasileiro (enquanto “identidade cultural”) é alegre, hospitaleiro, emotivo, acolhedor, com uma identidade cultural permeiada por um certo “calor humano”. Posso dizer, como brasileira, que o Brasil é múltiplo! Existem vários “brasis” dentro do Brasil. Existem também disparidades intensas de ordem sócio-econômica e cultural entre as várias regiões do território brasileiro. Há preconceito racial, de gênero e muitos outros conflitos que dizem respeito ao corpo e ao respeito com a “diferença” e que se desdobram em atos de violência cotidianos e muitas vezes, “mascarados”. 

Tentando responder à sua pergunta quanto à Biodança, penso que também há dificuldades com relação a trabalhos corporais no Brasil. Tocar também pode ser um tabu aqui (claro, que se diferenciando do contexto europeu). A ideia do brasileiro que está sempre aberto/disponível para o contato corporal é outra construção ficctícia. As relações corporais aqui são mais disfarçadas, “camufladas” e existem fissuras relacionais criadas entre os modos de se relacionar. Por exemplo, um relacionamento entre um negro e uma mulher branca pode sim, aqui, não ter tanta aceitação, mas ninguém quer assumir que é racista. Tomemos, por exemplo, o sistema de cotas nas universidades brasileiras para estudantes advindos de escolas públicas e/ou de etnia indígena e negra, e de baixa renda implantado pelo governo Lula. Há conflitos e uma rejeição silenciosa por parte de muitos brasileiros em relação a esse sistema, que tenta, de certa maneira, implementar ações mais democráticas para populações historicamente negadas e marginalizadas socialmente.Desse modo, percebo também outros caminhos que se direcionam para a construção de relações baseadas na eqüidade de direitos, na desconstrução de formas rígidas e discriminatórias de lidar com a diferença, mas isso ainda é da ordem de uma herança colonialista. Lembremos, por exemplo, que o Brasil também tem uma história de colonialismo, onde a cultura do branco, adulto, macho está “sempre no comando”, como bem nos diz o compositor Caetano Veloso em sua música Fora da Ordem. Mas sim, há uma rica e potente diversidade cultural no meu país. Há também pessoas que, com suas práticas diárias de resistências afetuosas, nos surpreendem por sua potência em desconstruir e criar outras possibilidades de nos relacionarmos com o corpo e com os lugares. Sim, porque os espaços (sejam urbanos ou rurais) também são construções de nosso olhar corporal , mas isso é outro assunto. Concluindo, mas não pretendendo ter uma resposta fechada para sua questão, prefiro pensar não na “facilidade” do brasileiro para o contato corporal, mas que nos diferentes “brasis” que existem no Brasil são construídos modos inteiramente diversos de lidar com o contato e com o corpo, o que vai também reverberar nas práticas terapêuticas corporais de uma maneira geral.

4. Por que você parou Biodanza?

Foi um longo processo...E creio que não foi algo que instantaneamente decidi. Aconteceu de uma maneira “natural”, no sentido de que houve um tempo de amadurecimento para que eu me direcionasse para trabalhos corporais que envolvessem a Dança no contexto terapêutico. Algumas questões me inquietavam na Biodança; coisas que eu nem sabia nomear, mas que só fui compreender quando passei a fazer aulas de dança contemporânea. Contudo, percebo a imensa importância que a Biodança teve em minha vida e na ressignificação de muitas questões ligadas ao corpo e às minhas relações com a vida, de uma maneira geral. E hoje fico refletindo, e isso não tem uma condição de “verdade absoluta”, que o corpo traz uma potência que é dele. Como faz Espinosa, é necessário pensarmos também sobre o que pode o corpo, ao invés de perguntarmos sobre o que é o corpo. As práticas corporais em geral vão construir relações com os corpos, que podem se direcionar para a reprodução de um biopoder, mas também podem ir descobrindo possíveis caminhos para o intempestivo, para um corpo devir, que se reconstrói continuamente. E hoje encontro muito essa força na dança contemporânea. Mas isso também não quer dizer que não pode haver uma aula de dança, dita contemporânea, construída em um “solo” rígido e identitário, reproduzindo o mesmo, negando o que é da alteridade. Então, meu percurso pelas práticas corporais estão totalmente relacionadas às maneiras como vou me relacionando corporalmente com o mundo...Talvez hoje a dança me traga mais questões e menos respostas, e isso me instiga a continuar, pois não busco respostas prontas, acabadas e finitas. Dançar pra mim é como viver, respirar, pode ser prazeroso e angustiante também, mas é onde sou e não sou... E me reconstruo continuamente...

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5. O que você faz agora?

Venho de uma formação em psicologia, numa prática de base fenomenológica-existencial, propriamente da Gestalt-Terapia e Psicologia Transpessoal. Trabalhei muitos anos no Sistema Único de Saúde – SUS, sistema público brasileiro direcionado à população. Em nosso país, a saúde também é um Direito, garantido na Constituição. Pois bem, minha atuação sempre foi mais voltada para as áreas da Saúde Mental trabalhando no CAPS- Centro de Atenção Psicossocial, que são serviços de saúde mental de lógica territorial e comunitária. E também com ações de prevenção e assistência/cuidado a pessoas com HIV/AIDS e, por último, me dediquei à Política das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), envolvendo, práticas individuais e corporais como massagem terapêutica, Terapia Comunitária, dança-terapia, entre outros. Trabalhando com a área da Saúde, inevitavelmente me aproximei da Educação. Os trabalhos corporais com dança me direcionaram para uma especialização em Arte-Educação até o momento em que tomei a decisão de ir para Fortaleza, capital do estado do Ceará para fazer o curso de Licenciatura em Dança na Universidade Federal do Ceará; que é o que estou fazendo neste momento. Mas é importante também deixar claro que tomar essa decisão foi um longo processo. No momento, me dedico a fazer o Curso de Licenciatura em Dança, pela Universidade Federal do Ceará.

6. É difícil voltar para a universidade na sua idade?

O mais difícil é superarmos as ideias que carregamos e que envolvem os modelos pré-estabelecidos socialmente sobre o corpo que pode ou não dançar. Sobre as ideias tradicionais do “ideal” de corpo do dançarino, e portanto, de idade para se começar a dançar, estudar, e por que não dizer, recomeçar, (tendo a consciência que não é mais do zero, pois não existe zero e meu corpo já traz outras experiências!) O que quero dizer é que o que aprendi e vivi como psicóloga também me ajuda a dançar. As coisas dialogam. Acredito que o maior desafio é não cair no lugar do “modelo” a ser seguido, mas permitir que, independente da idade, possamos ouvir e fazer o que o coração pede, e claro, pagaremos um preço por isso, mas pode ser muito gratificante e essencial para se continuar vivendo de um modo mais intenso e paupável. Não digo que foi fácil, pois meu maior desafio foi encarar meus medos, inseguranças, incertezas, e repito que isso não acabou, sempre estou em permanente diálogo com as escolhas que estou fazendo... Não é fácil, pois o mundo nos ensina a buscar “segurança e estabilidade”, mas digo que isso é uma doxa que se coloca em nós ocidentais. Pular no abismo requer coragem( o que não significa negar a existência dos nossos medos) mas também, uma certa dose de loucura (risos), de caminhar no desconhecido em um terreno que não é mais seguro, mas cheio de fissuras...

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7. Os seus amigos, a sua família, os brasileiros em geral, eles entendem bem uma tal mudança, o que você deixa o seu trabalho, a sua cidade, para começar a partir do zero?

É delicado responder a essa questão, pois, em geral, recebo apoio dos meus amigos e familiares para ir atrás dos meus sonhos, do que realmente me realiza enquanto pessoa e também profissionalmente. Por outro lado, também vivo em um país, que atualmente está numa situação muito difícil, instável economica e politicamente, com muitos retrocessos quanto à garantia da democracia. Estou indo atrás do que me move o coração, mas também estou atenta a essas dificuldades. Principalmente porque viver de arte, ou ser artista ou arte-educador no Brasil é realmente um grande desafio. É preciso coragem pra poder fazer certas escolhas e se lançar pro inesperado, mas realmente não escolhi fazer ou estudar dança; foi a dança que me escolheu, é muito mais forte que eu... É como respirar...

8. De onde você tira sua força? sua inspiração

Primeiramente, da força divina que há em mim. Acredito que todos temos essa capacidade de transformar, de construir novas realidades, nas “micro-revoluções” que podemos fazer diariamente em nossas vidas. Sinto que o mundo está doente, mas há também muitas pessoas, pequenos vaga-lumes insistindo em construir outras formas de se viver, de se relacionar, de modo mais saudável. Sempre procurei cuidar da minha espiritualidade e encontro força nas minhas relações com amigos e familiares, mas antes de tudo procuro me ouvir, ouvir o coração, encontrando coragem todos os dias pra ir adiante.

9. O que você daria para os jovens, para o mundo?

Gosto dessa pergunta, pois penso que todos temos algo a oferecer ao mundo. E também porque sempre gostei de trabalhar com jovens. Sempre que trabalho com jovens, mesmo com dança, o que procuro trocar com eles é a possibilidade de serem capazes de pensar sobre a nossa realidade e de mudar suas vidas no que eles acham necessário. Vivemos num mundo muito individualista, onde o corpo se torna cada vez mais descartável, onde as relações são cada vez mais superficiais e utilitárias. Então, penso que é decisivo provocarmos essas discussões com jovens, buscando trabalhar um pensamento crítico e transformador a partir da realidade em que vivemos. Um dos meus caminhos pra isso é a dança contemporânea, através da qual nosso corpo é político e não está dissociado da cultura, das nossas relações, dos modos de existência. Procuro trabalhar com o corpo como um campo sutil de forças e afetos, de troca, de relações, de experiências e como uma potência para existir. A revolução começa no corpo pra mim...

10. Muitos brasileiros criticam severamente o seu país a causa da corrupção, dos escândalos financeiros, da crescente violência urbana , do racismo, das desigualdades socais... você compartilha essa visão?

É provável que a corrupção política e jurídica juntamente com a impunidade sejam fatores preponderantes para intensificar a violência e as desigualdades sociais no meu país. Temos também que lembrar o processo de colonização do Brasil, que também se deu de modo violento, xenofóbico, racista e desigual. O povo brasileiro é rico culturalmente por suas heranças, mas também “introjetou”, de certo modo, o olhar do colonizador; de quem quer explorar os outros, ou melhor, de tirar vantagem do outro e das situações. É claro que essa é uma discussão que diz respeito às questões éticas. Há muitas pessoas, inclusive no contexto político, que trabalham por melhorias sociais no Brasil. Há diversos grupos de movimentos culturais e sociais que desenvolvem acões de conscientização política. Entretanto, o Brasil é diverso! Meu país é um continente, com regiões muito diferentes umas das outras e essa complexidade maravilhosa também é um fator que devemos considerar para não cairmos numa visão generalista acerca dos brasileiros. Cada região se diferencia com seus sotaques, dança, costumes, aspectos geográficos, climáticos e seus modos de se relacionar. Mas sabemos sim que as condições sócio-econômicas, os níveis de escolaridade e desenvolvimento social de uma população estão diretamente ligados à qualidade de vida das pessoas. O Brasil é um país desigual infelizmente, com muitas contradições, mas há também um calor, uma afetividade, uma riqueza cultural que nos anima a continuar, a seguir em frente...

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11. O que o Brasil pode trazer para o mundo?

Assim que li sua questão, me veio imediatamente uma palavra em mente: Alegria! Não falo da alegria como um simples sentimento humano. Penso que essa “alegria” pode ser traduzida como características que percebo no povo brasileiro, como a capacidade de inventar, de encontrar caminhos nos momentos mais difíceis, com humor e criatividade. Podemos trazuzir isso como uma capacidade de superação e invenção do povo brasileiro, que também é, de modo geral, um povo acolhedor e que gosta de contato humano. O brasileiro pode trazer pro mundo a possibilidade da invenção de outros modos de existência...

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12. A dança é uma forma de terapia?

Essa é uma questão que sempre esteve presente comigo, pois como psicóloga e dançarina, me dedico a estudar esses trânsitos entre corpo e terapia. Sendo objetiva, penso que a dança pode ser utilizada como um instrumento terapêutico, nesse caso, em um contexto específico. Entretanto, também penso que a dança, por ser uma atividade artística que acontece no corpo, traz, em si mesmo, a possibilidade de afetar os corpos, descontruindo-os, transformando-os, e possibilitando uma ampliação da consciência que temos de nós mesmos e do mundo. Ao dançar, estamos pensando com o corpo e também construindo pensamentos, mas de outra ordem. Pensamos com a ordem dos afetos, do devir, das possibilidades. A arte, de uma maneira geral, pode nos ajudar a desenvolver maneiras mais plásticas de nos relacionarmos com o mundo. A dança, dependendo de como ela é ensinada ou acionada no corpo, assim como a terapia, pode servir para nos aprisionar ou libertar, pode ser terapêutica ou não. São caminhos possíveis... Mas sim, penso que a dança (no contexto terapêutico ou fora deste) e considerando a maneira como vai sendo agenciada pelos corpos, pode potencializar nossos modos de existência.

13. Como a dança mudou sua vida?

A dança está sempre me provocando mudanças. Ela não está separada de mim. A dança e a vida são uma coisa só pra mim. Em tudo há ritmo, silêncio, pausas, fluxos, espaço, deslocamento, movimento, respiração. Quando a gente pensa assim, a gente encontra dança em tudo. Quando ando nas ruas, sou afetada por muitas coisas, pois encontro dança nas praças, no olhar, no vento, no som, nos objetos, nas cores, enfim, parece que o movimento está em tudo, mesmo na mais aparente imobilidade das coisas. A dança sermpre esteve comigo desde quando era criança, e com ela, consigo enxergar coisas em mim e no mundo que não acessaria somente de modo racional. Com ela, posso ousar e experimentar o novo, o ridículo, o estranho, o imprevisível, assim como me dou conta dos meus limites, das minhas memórias, meus medos, etc, e amplio os sentidos da vida. A dança sempre me ajuda a pensar e transformar o meu fazer no mundo. Ela é como respiração pra mim. Sem ela, realmente adoeço. Com ela, me refaço continuamente. E isso também não é uma tarefa fácil. Dançar nem sempre é prazeroso, pode ser angustiante também, pode ser difícil e cansativo, mas sempre há uma transformação, um aprendizado, como na existência, não é mesmo...

Abraço grande, Rejane.  

Para entrar em contato com Rejane : rbailarina@yahoo.com.br 

FΩRMIdea Brasil, 23 de julho 2016. Lire en français

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